É professor fundador da FGV-Rio e foi professor da graduação da UFRJ. Tem atuado como palestrante e mediador em diversos eventos nacionais e internacionais. É autor do livro Supremo Interesse (2020), é editor associado da RDA e possui diversos artigos publicados sobre temas de direito público.
O Brasil já foi ditadura e, depois, democracia. Já foi democracia e, depois, ditadura. O tempo não para, diria Cazuza. No momento, ao que parece, os discursos totalitários voltam a ganhar força. E, com eles, uma velha e perigosa ideia: a de que tudo pode a maioria.
O problema dessa premissa — e de quem a repete — é a sua incompatibilidade com o Estado de democrático de Direito. A Constituição é um limite para o que quer a maioria. Aliás, um dos papéis centrais da Constituição é justamente o de combater o “pode tudo” da maioria. Na verdade, não pode.
É possível observar diversos campos de batalha onde interesses sociais distintos estão em conflito, com a tentativa de imposição da vontade da maioria da vez. Um deles é o dos condomínios residenciais, onde condôminos têm buscado proibir a locação de imóveis por temporada. Isso porque, em virtude do desenvolvimento tecnológico, que permitiu que a locação pudesse ser anunciada não apenas através dos classificados de jornais, mas, também, através de plataformas digitais, o número de locações por temporada cresceu exponencialmente. E, por consequência dessa mudança social, uma modalidade de locação prevista há tempos no ordenamento jurídico passou repentinamente a incomodar.
A locação por temporada é instituto jurídico regulado pela Lei de Locações (Lei nº 8.245/1991), que prevê expressamente essa forma de utilização da propriedade pelos respectivos proprietários. Entretanto, diante dos incômodos eventualmente causados, parcelas significativas de moradores procuram, aqui e ali, proibir a locação por temporada. Eventual manifestação da maioria condominial neste sentido seria possível?
O Superior Tribunal de Justiça retoma, nesta terça-feira (13/4), o julgamento de um importante caso sobre o assunto (que começou em 2019). O ministro relator do processo, Luis Felipe Salomão, votou a favor das plataformas digitais, destacando que os condomínios não podem restringir o aluguel por temporada porque ele não pode ser considerado atividade comercial, e que a modalidade via plataformas digitais é mais segura que as locações tradicionais, tanto para o locador como para o condomínio, pois existe o registro de toda a transação financeira e dos dados pessoais de quem vai permanecer no imóvel. Salomão também afirmou que haveria violação do direito de propriedade caso fosse permitido que os condomínios proibissem esse tipo de locação.
Do ponto de vista jurídico, a resposta constitucional clara é a de que a simples proibição (definida por maioria) não é possível. Para a Constituição da República, a propriedade é direito fundamental (artigo 5º, XXII). Em verdade, para além de um direito individual do proprietário, de usar, gozar e fruir do seu bem, há de se notar que a efetiva utilização da propriedade é determinante para o cumprimento da função social do imóvel, valor também constitucionalmente previsto.
Em tempos como os atuais, de economia compartilhada — com a preocupação sobre a adequada e eficiente disponibilidade de bens ociosos —, a locação por temporada é mais do que apenas o exercício do direito de propriedade. É o exercício da função social da propriedade. Em diversas oportunidades, decisões judiciais — inclusive do Supremo Tribunal Federal — consagraram que, ainda que o direito de propriedade possa ser limitado, isso não se confunde com a possibilidade de violar o núcleo essencial de tal direito.
Obviamente, como forma de conformar os interesses coletivos de todos os moradores de um edifício, é possível aos condomínios regularem a forma de utilização dos espaços comuns, regras de acesso, identificação dos locatários etc. Mas essas restrições não podem se confundir com a abolição do direito do proprietário de alugar o seu imóvel por temporada.
Assim como outros valores constitucionais, a utilização da propriedade — em especial na sua faceta mais moderna, viabilizada pelos avanços tecnológicos — pode eventualmente incomodar alguns ou mesmo a maioria. Mas, gostando ou não, o núcleo essencial dos direitos fundamentais deve ser respeitado. A maioria não pode tudo.
Fonte: Conjur
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