Desde a entrega do anteprojeto de revisão do Código Civil, cuja proposta declarada é atualizar a legislação civilista às transformações sociais ocorridas após 2002, muito se repercutiu sobre o conteúdo das mudanças sugeridas. Celebrada a recepção de conceitos mais inclusivos no direito de família e apresentada a definição de patrimônio digital, há de se refletir sobre outros temas de grande relevância prática afetados pelas mudanças propostas e, nesse âmbito, é necessário destacar o retrocesso da nova regulamentação direcionada ao uso do Airbnb nas propriedades brasileiras.
Atualmente, a legislação brasileira é omissa sobre a possibilidade de disponibilização de imóveis a terceiros, mediante retribuição, na esteira da economia de compartilhamento, o que notoriamente acontece por meio de plataformas digitais, como Airbnb ou Booking. A consequente insegurança jurídica é manifesta. Diante da ausência desta regulamentação, por vezes, condomínios deliberam por proibir a utilização dessa modalidade de utilização da propriedade privada, dando início a uma série de litígios com o proprietário afetado.
Na tentativa de pacificar tais relações, o anteprojeto do Código Civil propõe a inclusão do §1 ao artigo 1.336, com a seguinte redação:
Nos condomínios residenciais, o condômino ou aqueles que usam sua unidade, salvo autorização expressa na convenção ou por deliberação assemblear, não poderão utilizá-la para fins de hospedagem atípica, seja por intermédio de plataformas digitais, seja por quaisquer outras modalidades de oferta.
Da previsão, extrai-se dois pontos relevantes que sedimentam as discussões jurisprudenciais sobre a matéria: a modalidade de contrato no caso de locações em plataformas digitais na forma de economia compartilhada é a hospedagem atípica; tal prerrogativa só será dada ao proprietário se prevista na convenção ou se aprovada por deliberação da assembleia de condomínio.
Para compreender melhor o contexto das alterações promovidas, é importante recapitular o debate promovido nos dois precedentes que, embora não sejam vinculantes, têm sido utilizados como referência para a apreciação das disputas entre condomínios e proprietários quanto ao tema em estudo.
Em julgamento do REsp nº 1.819.075/RS, a 3ª Turma analisou demanda em que um condomínio tentava proibir proprietários de alugarem suas unidades por meio do Airbnb. A questão principal enfrentada foi se a disponibilização de imóveis a terceiros mediante contraprestação pecuniária, por curto período e envolvendo plataformas virtuais, pode ser considerada como atividade comercial passível de restrição imposta por condomínio residencial, ante a previsão em convenção condominial de destinação exclusivamente residencial.
Em voto louvável, o relator ministro Luis Felipe Salomão manifestou-se contrário a restrição da atividade pela convenção do condomínio, sublinhando que esta se coaduna com a função social da propriedade e afastando o caráter comercial apontado pelas instâncias ordinárias ao dissociar a prática do contrato de hospedagem, previsto na Lei nº 11.771/2008, em virtude da ausência do “complexo de prestações” inerente à modalidade. Segundo ele, trata-se de norma restritiva genérica e irracional, sem previsão legal, que afronta aos poderes inerentes ao exercício do direito de propriedade.
Todavia, acompanhado por outros dois ministros, prevaleceu o voto do ministro Raul Araújo, no sentido da possibilidade do condomínio edilício com previsão de destinação residencial das unidades autônomas proibir a realização de ofertas de imóveis por meio de plataformas digitais ante o caráter comercial da atividade. Para tanto, considerou-se estar diante de nova modalidade de hospedagem, caracterizada como contrato de hospedagem atípico, a qual não estaria vinculada aos ditames da legislação que regula a modalidade típica ou, ainda, ao contrato de locação por temporada (artigo 48 da Lei nº 8.245/1991).
Condôminos deveriam aprovar cessão do imóvel
Nessa linha, estabeleceu-se que a disponibilização das unidades pelas plataformas digitais não era ilícita, mas era necessário que os próprios condôminos, por maioria qualificada (dois terços das frações ideais), aprovassem em assembleia a destinação das unidades para além do residencial, autorizando a prática.
Por outro lado, sensivelmente diferente, no julgamento do REsp 1.884.483/PR, a principal questão em debate era a possibilidade da convenção de condomínio expressamente proibir a locação de unidades por tempo inferior a 90 dias. Por diferentes fundamentos e várias referências às discussões travadas no julgado anterior, a 4ª Turma entendeu que tal deliberação seria válida.
O relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, atento às divergências sobre o tipo contratual que se amolda à disponibilização de imóveis por meio de plataformas digitais, reconheceu que pode se dar em diferentes arranjos, mas logo tratou de assentar que tal questão era irrelevante para apreciar o caso concreto.
Todavia, filiou-se ao entendimento do ministro Raul Araújo, exarado no REsp nº 1.819.075/RS, no sentido de que as locações via Airbnb e similares destoam da destinação exclusivamente residencial e, portanto, com base no artigo 1.336 do Código Civil, não haveria nenhuma ilegalidade ou falta de razoabilidade na restrição imposta pelo condomínio. Para tanto, citou circunstâncias relacionadas ao uso das áreas comuns de lazer, comportamento dos hospedes e controle de entrada e saída do condomínio que podem ser compreendidas como afetação do sossego, da salubridade e da segurança.
De outro lado, o ministro Marco Aurélio Belize abriu divergência tão somente para alterar a fundamentação. Isto, pois, conforme seu entendimento, era importante destacar que a modalidade da contratação é de locação por temporada pura, permitida pelo artigo 48 da Lei de Inquilinato e não retira a destinação residencial do imóvel. Tal questão é relevante, pois afetaria o quórum necessário para aprovação em assembleia condominial da prática da locação via plataformas digitais. Segundo ele, caso se entenda que a prática desvirtua a destinação residencial, por força do artigo 1.351, CC, seria necessária aprovação unânime e não por maioria qualificada.
Por sua vez, a ministra Nacy Andrighi igualmente abriu divergência para alterar a fundamentação, a fim de defender que a modalidade contratual se trata de contrato legalmente atípico e socialmente típico e, consequentemente, afastar a vinculação a qualquer legislação existente.
Por fim, o ministro Moura Ribeiro também divergiu, mas para afirmar que a pretensão não poderia ser conhecida, eis que haveria ocorrido preclusão da matéria durante o processo. Entretanto, manifestou-se favoravelmente a locação via plataforma digital, desde que respeitado o tempo mínimo previsto na convenção condominial ou o máximo previsto na locação por temporada.
Nota-se, portanto, que o anteprojeto teve êxito em encerrar as discussões sobre o tipo contratual das locações típicas das plataformas digitais, filiando-se ao posicionamento da ministra Nancy Adrighi, a fim de afastar a incidência das normas relacionadas ao contrato típico de hospedagem, assim como da locação por temporada. Igualmente, ao optar por silenciar em sua regulamentação, reconhece que é contrato socialmente típico, o qual deve ser interpretado em conformidade com sua prática.
Ainda, adota posicionamento restritivo sobre a prática, pois, ainda que reconheça sua legalidade, estabelece significativas barreiras para sua implementação nos condomínios, o que vai na contramão da ideia de atualizar a legislação à nova realidade social do País.
Ganhos financeiros são ignorados
Ao dificultar que proprietários cedam seus espaços por meio das plataformas virtuais, o legislador ignora a injeção bilionária de recursos nas comunidades beneficiadas pela prática. Em estudo realizado pela Oxford Economics [1], estima-se que só em 2021 os hóspedes do Airbnb gastaram 4 bilhões de dólares, o equivalente a 5,6% de toda atividade turística direta. Para atender essa demanda de viajantes, desde 2019, foram gerados 44 mil empregos diretos no Brasil e 101 mil empregos indiretos, só em 2021, nos mais variados setores como restaurantes, lojas e provedores de transporte. Ainda de acordo com o estudo, para cada U$ 10 gastos com acomodação, os hóspedes deixam U$ 52 no comércio local. Isso sem contar os números das outras plataformas.
Evidentemente que os resultados econômicos não devem se sobrepor aos imperativos da convivência harmônica e a segurança dos condôminos, todavia, não se verifica nenhum estudo capaz de fornecer sólidos dados de que a — tão criticada — alta rotatividade de pessoas nas unidades imobiliárias efetivamente cause riscos à segurança e o sossego dos demais moradores.
O modelo de negócios baseado na disponibilização imóveis, ainda que inseridos em condomínios edilícios, por curta ou curtíssima duração já é uma realidade consolidada na sociedade, mostrando-se extremamente proveitosa tanto para quem as disponibiliza como para quem as loca, tendo revolucionado a indústria do turismo. Não é razoável criar empecilhos para sua implementação, tendo os juristas que elaboraram o anteprojeto perdido ótima oportunidade para estimulá-la e contribuir com o desenvolvimento econômico do Brasil.
Não é dizer que a prática é imune a problemas, sendo certo que abusos de direito devem ser veementemente punidos. Entretanto, impor a restrição do uso da propriedade fundamentada exclusivamente na exceção, ao invés da regra, ofende o direito à propriedade e, mais preocupantemente, tolhe a livre iniciativa e a própria liberdade econômica, direitos que gozam da proteção constitucional.
Não obstante, a legislação novamente peca em não definir o quórum necessário para aprovação da atividade em assembleia condominial, o que, como os próprios votos apresentados indicam, causará grande insegurança jurídica, incentivando a propositura de novas demandas judiciais, ao arrepio da pacificação social.
Nesse cenário, é de se lamentar que a iniciativa de “atualizar” a legislação civilista tenha fechado os olhos à realidade fática, de modo que embora a letra de lei mal tenha nascido, já se sabe que irá ser posteriormente alterada, visto que, como muito se sabe — ou já se deveria saber —, é impossível lutar contra o desenvolvimento econômico na base da “canetada”. É inaceitável que direitos abstratos e situações genéricas sejam fundamentado para tentar ofuscar o brilhantismo do mercado.
O Brasil segue sua sina de legislar na teoria e dissociado da prática, atento aos debates acadêmicos e afastado das evidências empíricas, sempre arrisco às inovações de mercado, prejudicando, em última análise, o consumidor final.