A Câmara dos Deputados está em vias de apreciar o Projeto de Lei 4.894/2019, de autoria do deputado Hugo Motta, que conta com substitutivo de autoria do relator, deputado Luiz Carlos Motta, tratando da eficácia dos acordos extrajudiciais para a solução de conflitos trabalhistas. Sem prejuízo da relevância de medidas legislativas como a proposta, que contribuam com a promoção da paz social e da segurança jurídica, sem deixar de lado a tutela de interesses que mereçam atenção, as proposições original e do substitutivo comportam reflexões no sentido do aperfeiçoamento.
Para tanto, é preciso tomar como ponto de partida a ideia de que a resolução adequada de disputas vem cada vez mais avançando no Brasil. A presente área pode ser tida como um campo específico, de caráter interdisciplinar, e que tem como principal objeto a solução de conflitos. Muitos estudiosos do tema consideram como marco inaugural o emblemático evento ocorrido em 1976 nos EUA, denominado Conferência Pound, no qual inclusive foi apresentado ao mundo a então inovadora proposta do professor Frank Sander, correspondente ao “Fórum Multiportas” [1].
E é exatamente o presente conceito que precisa ser considerado na reflexão sobre o PL 4.894, de 2019.
A ideia do Fórum Multiportas, que conta com relevante presença no atual Código de Processo Civil, consiste na proposta de que se coloque à disposição da sociedade diversas possibilidades de mecanismos para a solução dos conflitos, inclusive considerando a adequação do mecanismo ao conflito. Como dizia o professor Frank Sander, “Fitting the Forum to the Fuss”, ou seja, é o mecanismo que se adequa ao conflito, e não o contrário [2]. Por outras palavras e numa perspectiva prática, cabe ao Estado e ao sistema de Justiça disponibilizar à sociedade diversas possibilidades, de modo que seja adotada aquela que mais se ajusta à situação, o que também se alinha com a proposta do professor Kazuo Waranabe, de que o artigo 5º, XXXV, da Constituição deve ser compreendido como o livre acesso a um serviço de Justiça Consensual de qualidade [3].
Além disso, outro conceito que compõe o Fórum Multiportas envolve a ideia de escalonamento ou ordenação dos mecanismos, tendo por critério o nível de participação das partes e envolvimento de terceiros neutros na solução [4]. Isto é, num extremo estaria a negociação direta, na qual as partes encontram a solução sem qualquer envolvimento de um terceiro, enquanto no outro extremo estaria a sentença judicial, na qual não há participação das partes e há total envolvimento do terceiro neutro na solução.
Refletindo sobre essas diretrizes, a Lei 13.467/2017, também denominada reforma trabalhista, criou o mecanismo da Jurisdição Voluntária Trabalhista, prevista no artigo 855-B e seguintes da CLT, estabelecendo a possibilidade de que seja firmado acordo extrajudicial, levado à homologação judicial. Se fosse adotar a lógica do escalonamento dos mecanismos, talvez devesse o legislador ter inicialmente investido na mediação pré-processual, na qual, sem necessidade de processo judicial, o acordo é fechado dentro do Judiciário e também homologado pelo próprio Judiciário. Na época, tal mecanismo não existia, tendo sido admitido inicialmente para conflitos coletivos, por meio da Resolução CSJT 174/2016, e posteriormente para conflitos individuais, por meio da Resolução CSJT 288/2021.
Mas o fato é que a Jurisdição Voluntária Trabalhista foi instituída e passou a ser utilizada. Inclusive é possível considerar que o presente mecanismo ainda vive momento de amadurecimento, principalmente diante de alguns temas que aguardam definição jurisprudencial. Um desses temas consiste na possibilidade do magistrado que analisa o pedido de homologação alterar os termos pactuados, isto é, se o magistrado pode alterar o acordo ou apenas deve se limitar a rejeitar a homologação, quando perceber que há alguma cláusula ou condição que seja inadmissível. Recentemente, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho proferiu decisão entendendo válida a alteração (RR-1001542-04.2018.5.02.0720), ao passo que a 7ª Turma entendeu que só caberia a rejeição da homologação (RR 1001651-86.2019.5.02.0201).
Portanto, é nesse contexto que a Câmara dos Deputados irá se debruçar sobre a análise do PL 4.894 de 2019.
O texto original da proposta estabelecia a possibilidade do acordo extrajudicial, com dispensa da homologação judicial, sendo firmado perante a autoridade cartorária (notário), ou seja, por meio de escritura pública. O substitutivo promove ampliação, no sentido de também permitir o acordo perante as Câmaras Privadas de Mediação e Conciliação.
Não há como negar que as Câmaras Privadas, previstas tanto no atual Código de Processo Civil, quanto na Lei 13.140/2015, consiste em mecanismo voltado à solução autocompositiva de conflitos, que tem se consolidado em termos institucionais e conta com expertise própria para a busca do consenso e pacificação social.
Além disso, não há dúvida de que atualmente existe um pequeno exército de profissionais da busca do consenso, e que se qualificam tecnicamente para isso, que estão em torno das Câmaras Privadas. Logo, no momento atual, talvez as Câmaras Privadas estejam mais vocacionadas e preparadas para a solução de conflitos trabalhistas pela via do consenso e promoção da pacificação social, do que os Cartórios.
E nesse sentido, inclusive adotando a lógica do Fórum Multiportas, talvez seja o caso de que primeiro a presente atividade de pacificação de conflitos trabalhistas seja exercida pelas Câmaras Privadas. E mais, a exemplo do que já faz em alguma medida o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho passe a ter a incumbência de supervisionar e estabelecer diretrizes para o funcionamento dessas Câmaras, quanto à solução dos conflitos trabalhistas.
Mas para além das considerações apontadas e de forma específica, no sentido de contribuir com o debate, faria as seguintes sugestões aos legisladores e, em especial, ao deputado Luiz Carlos Motta:
1 – Sobre o órgão responsável pelo acordo:
– limitar tal possibilidade às Câmaras Privadas de Conciliação e Mediação, excluindo a solução via escritura pública;
– estabelecer a necessidade de que para atuar na solução de conflitos trabalhistas e produzir acordos extrajudiciais, as Câmaras Privadas devem contar com autorização do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, responsável também pela supervisão e fiscalização. Isso contribuiria para a lisura do funcionamento, além de evitar os problemas como os vivenciados com as Comissões de Conciliação Prévia, criadas e fracassadas no final dos anos 90 e início dos anos 2000;
– prever a possibilidade de que entidades sindicais se dediquem à criação de Câmaras Privadas, o que inclusive pode contribuir para ampliar a pacificação social no âmbito das relações de trabalho;
2 – Sobre o questionamento ao acordo extrajudicial:
– diante da dispensa de homologação judicial, adotando uma lógica de trocar controle prévio por controle posterior por parte do Judiciário, prever a possibilidade de ação anulatória do acordo, de competência funcional originária da Vara do Trabalho, observada a regra de competência territorial do artigo 651 da CLT;
– tal mecanismo de impugnação do acordo poderia ser utilizado nas situações de vício de vontade ou de ilegalidade no conteúdo do acordo, inclusive quanto à matéria tributária;
– o presente mecanismo poderia também contar com norma semelhante ao previsto no artigo 611-A, § 4º, da CLT, o qual estabelece que no caso de anulação de cláusula de Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho a eventual contrapartida também se anula;
– prever que o Ministério Público do Trabalho ou terceiros prejudicados (como a Fazenda Pública quanto à matéria tributária) tenham legitimidade para promover a ação anulatória;
3 – estabelecer que, no caso de falência ou recuperação judicial, o acordo extrajudicial não pode ter condição privilegiada comparativamente com os créditos constituídos judicialmente.
Com esses ajustes, tendem a se ampliar as condições para que o mecanismo proposto contribua com a pacificação social e segurança jurídica, sem deixar de tutelar interesses que exigem tutela diferenciada.
Mas independente do formato final, o importante é que o Poder Legislativo esteja atento ao tema e contribua para soluções que levem à harmonização das relações de trabalho e ao tratamento adequado dos conflitos.