Discussão judicial avança na proporção em que cresce a venda de veículos no país.
Moradores de condomínios estão saindo derrotados em processos judiciais que discutem a instalação de tomadas para carros elétricos em vagas de garagem. Decisões em cinco Estados entendem que essa permissão tem que estar expressa em convenção ou ter sido aprovada em assembleia. A discussão, ainda embrionária, avança na proporção em que crescem as vendas de carros elétricos no país. Mas ainda não é possível falar em jurisprudência sobre o assunto, segundo advogados ouvidos pelo Valor. Já que a maioria das decisões é desfavorável, o melhor caminho ainda é tentar negociar com os condomínios, apontam os especialistas.
Em novembro, o país acumulava 204 mil carros elétricos, segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Boa parte foi emplacada entre janeiro e novembro do ano passado: um total de 77.648 unidades – um aumento de 78% sobre o mesmo período de 2022 (43.658). Mas nem todos precisam de tomadas. O número inclui híbridos não plug-in (a recarga externa é desnecessária), híbridos plug-in e 100% elétricos – ficam de fora ônibus, caminhões e elétricos levíssimos, como patinetes. Nos últimos meses, os veículos elétricos plug-in superaram os híbridos não plug-in, que lideravam, em volume, os emplacamentos mensais. Em novembro, dos 10.601 emplacamentos, 53% foram de plug-in e 47% de não plug-in.
Uma das decisões foi dada em ação ajuizada por um condomínio da capital paulista contra um morador. Ele instalou, sem autorização, uma tomada para abastecimento de carro elétrico na vaga de garagem (processo nº 1018652-78.2019.8.26.0100). O morador alegou, no processo, que a instalação ocorreu conforme requisitos técnicos e de segurança e citou projeto de lei municipal – já transformado em lei (veja abaixo) – para tornar obrigatória instalação de tomadas de energia elétrica em vagas de garagem de edifícios da capital. Ele acrescentou que usou na instalação quadro de luz da própria unidade.
Em primeira instância, o morador foi condenado a desfazer a instalação elétrica em 30 dias. A decisão levou em consideração que, pela convenção do condomínio, as vagas de garagem são indeterminadas e integram área comum. Por isso, o morador não teria direito de propriedade exclusiva sobre a vaga em que instalou a tomada. A decisão foi mantida pela 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
No Ceará, a 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça (TJCE) negou o recurso de um morador, levando em conta a necessidade de aprovação da medida em assembleia de condomínio (processo nº 0640555-02.2022.8.06.0000). No TJDF, a 3ª Turma Cível decidiu no mesmo sentido (processo nº 07340983220228070000). Nos julgamentos, segundo a advogada Maricí Giannico, do escritório Mattos Filho, têm prevalecido entendimento de que a decisão precisa partir dos condomínios, por convenção ou deliberação em assembleia geral. Mas ela destaca que, no TJRS, há um precedente favorável a um casal. Nele, os julgadores afirmam que condomínios e condôminos devem se adaptar à realidade “cada vez mais crescente” dos híbridos (processo nº 5081515-30.2021.8.21.7000).
O casal instalou a tomada aparentemente com autorização do síndico – a questão chegou a ser discutida em assembleia. Porém, o condomínio decidiu recorrer à Justiça. Em sua defesa, alegou a necessidade de autorização da seguradora, indicando que o risco gerado por novas instalações não estaria coberto pela apólice. E que eventual permissão para que os autores mantivessem a instalação iria acarretar o direito dos demais condôminos de fazer o mesmo.
O pedido de liminar, porém, foi negado em primeira e segunda instâncias. Em seu voto, o relator, desembargador Dilso Domingos Pereira, da 20ª Câmara Civil, destaca que “os condomínios, é inegável, deverão se adaptar à realidade do mercado de consumo de automóveis, em que a venda de híbridos é crescente, despontando estes como substitutos dos carros alimentados por combustíveis fósseis”. Ele acrescenta que, “deve-se, contudo, garantir a segurança dos condôminos em relação às instalações, o que, no caso concreto, não aparenta estar em risco (com base na opinião técnica emitida por profissional habilitado) – fato, no entanto, passível de prova em sentido contrário”.
Não é qualquer tomada que serve para o carro elétrico, mas não é nada complexo, segundo Ricardo Bastos, presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico. “É mais ou menos como colocar aquelas tomadas um pouco mais fortes para microondas, por exemplo. Não é nada muito diferente do que os eletricistas sabem fazer”, afirma. “As próprias montadoras prestam as informações técnicas.”
A situação envolvendo as tomadas para carros elétricos é relativamente nova, segundo Marcelo Tapai, advogado especialista em direito imobiliário e sócio do Tapai Advogados. Por isso, ainda são poucos os casos na Justiça sobre o assunto. “As discussões ainda acontecem no âmbito dos condomínios”, diz. Como o carro elétrico ainda é uma novidade, segundo o advogado, a demanda ainda se concentra, em geral, em condomínios de alto padrão e há alguma resistência. “É a pessoa que tem que se adaptar ao meio e não o meio à pessoa. Quem compra tem que saber se os moradores vão querer atender à demanda.”
O escritório tem recebido questionamentos sobre o assunto, de acordo com Tapai, e acompanha uma notificação extrajudicial que foi feita porque condôminos fizeram uma “gambiarra” que desagradou o condomínio.
Gabriel de Britto Silva, sócio do escritório RBLR Advogados e participante da Comissão de Direito Condominial da OAB-RJ, entende que, dificilmente, o tema chegará ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), por envolver matérias de fato e de prova, incabíveis de serem objeto de recurso especial.
“Apesar do aumento crescente e contínuo da busca por carros elétricos e híbridos no país, é necessário que o consumidor desses produtos, antes da aquisição, verifique se o edifício onde reside está apto a receber estação de carregamento, que obras precisarão ser realizadas e se há expressa autorização da assembleia com quórum qualificado para tal fim”, diz.
O advogado acrescenta que, mesmo que o condômino queira custear e implantar estação para carregamento de veículo híbrido ou elétrico, é necessária autorização da assembleia, e não apenas do síndico ou da administradora. “O interesse coletivo se sobrepõe ao individual.”
O advogado cita decisão da 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Rio de Janeiro nesse sentido. A moradora obteve autorização verbal do síndico – seu marido – para instalar tomada em área comum do condomínio para abastecer seu veículo (processo nº 0813543-21.2022.8.19.0209).
Para os julgadores, contudo, o uso dos espaços comuns depende necessariamente de autorização e aprovação em assembleia. “Ainda que assim não fosse, há sérias dúvidas quanto à segurança da instalação levada a efeito com sérios e latentes riscos de incêndio e lesão aos moradores e ao patrimônio quer do réu quer dos demais condôminos”, afirmam na decisão.