Em 4 de setembro de 2021, fiz algumas anotações sobre as cidades sustentáveis e os desafios que a urbanização traz à natureza, ao ecossistema e aos humanos. Um desses desafios é a poluição sonora, presente nas cidades grandes, médias e nas pequenas e que enfoquei no artigo de 11-11-2023. Como indiquei então, o som é uma onda mecânica acústica que comprime o sistema auditivo e permite a percepção do ambiente externo com sensações de dor ou de prazer; é caracterizado pela intensidade, pela frequência e pelo timbre, o formato da onda sonora que diferencia sons da mesma frequência produzidos por fontes sonoras diferentes. O conjunto da intensidade, da frequência e do timbre da onda sonora diferenciam o que chamamos de música, de ruído, de barulho, sempre a depender da percepção da pessoa que ouve. Como dissemos então, a poluição sonora ocorre quando os sons ultrapassam os níveis considerados normais para os limites da audição e constitui uma ameaça à saúde humana.
Embora não haja uma referência expressa ao som, a poluição sonora pode ser enquadrada no art. 3º, inciso III, alíneas ‘b’ (criem condições adversas às atividades sociais e econômicas), ‘d’ (afetem as condições sanitárias do meio ambiente) e, principalmente, ‘e’ (lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos) da LF nº 6.938/81 de 31-8-1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. É uma poluição diferente, que interfere no meio ambiente enquanto produzida e que, cessada, não deixa vestígio no ecossistema.
Em sua percepção prática, é uma poluição causada por humanos que causa prejuízo aos humanos, em especial.
A legitimação ativa é definida pela natureza da poluição e pelo grau de interferência no ambiente; utilizando uma expressão do Min. Herman Benjamin, o direito de vizinhança predomina no ruído ‘parede a parede’ em que as ações são movidas pelos vizinhos e particulares prejudicados, enquanto o direito difuso transparece quando o ruído se espalha por áreas mais extensas, atingindo terceiros não diretamente ligados à fonte sonora a legitimar a intervenção do Ministério Público ou da administração. Além da ordem de cessação do ruído, a reiterada poluição sonora pode caracterizar o dano moral coletivo passível de indenização, a ser visto no caso concreto. Anote-se que “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no sentido de que a defesa de direitos relacionados ao direito ambiental, dentre eles os que tratam de ‘poluição sonora’, se enquadram no conceito de interesses difusos, transindividuais, sendo desnecessária a autorização específica dos associados para o ajuizamento da ação civil pública por parte de associação”. A poluição sonora decorre do descumprimento dos padrões e limites exigidos, irrelevante o número de pessoas afetadas ou sequer que exista prévia reclamação a legitimar a ação da administração.
A fiscalização e a coibição da poluição sonora cabem aos quatro membros da Federação, independente da responsabilidade pelo licenciamento da atividade, competência comum prevista no art. 23 da Constituição Federal não afastada pelo art. 17 da LCF nº 140/01 ante o dever de cooperação previsto em seu art. 1º.
O Supremo Tribunal Federal tem sido sensível à questão ao analisar a constitucionalidade de leis municipais que proíbam a soltura de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos que produzem estampido. Ao apreciar a ADPF nº 567-SP, o Pleno odo STF julgou constitucional a LM nº 16.897/18 de São Paulo que proíbe o manuseio, a utilização, a queima e a soltura de fogos de estampido e de artifício e de artefatos pirotécnicos de efeito sonoro ruidoso: segundo o relator, a lei buscou promover um padrão mais elevado de proteção à saúde e ao meio ambiente, em especial a proteção de pessoas sensíveis aos estampidos e a proteção da fauna, e foi editada dentro de limites razoáveis do regular exercício de competência legislativa pelo município.
No mesmo sentido o Supremo Tribunal manteve decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, RE nº 1.210.727-SP, com repercussão geral, 9-5-2023, Rel. Luiz Fux, Tema STF nº 1056 (Informativo nº 1.093), em que se discutiu, à luz dos art. 5º, LIV e LV, 23, IV, 24, VI e 30, I e II da CF a constitucionalidade da LM nº 6.212/17 de Itapetininga-SP, que dispõe sobre a proibição, em zona urbana da municipalidade, da soltura de fogos de artifícios e artefatos pirotécnicos que produzam estampido, o Pleno do STF fixou a seguinte tese “é constitucional formal e materialmente lei municipal que proíbe a soltura de fogos de artifícios e artefatos pirotécnicos produtores de estampidos” (Tema nº 1.056). A decisão aprofunda a fundamentação da ADPF nº 567-SP e afasta a argumentação do município quanto a meios menos gravosos:
Ressalto, primeiramente, que a sugerida medida de regulamentação de horários não se adequaria à finalidade de proteger os danos causados a pessoas no transtorno do espectro autista e aos animais pela poluição sonora que advém da soltura de fogos de artifício com estampido. O mesmo ocorreria com o controle de decibéis, uma vez que, além da dificuldade de fiscalização da medida, ainda que fosse fixado limite em baixa intensidade, os efeitos danosos não seriam extirpados. Como assinalou o Ministro Alexandre de Moraes, Relator da ADPF 567, no voto condutor do acórdão, in verbis: […]
A poluição sonora tem gerado intensa litigância. O site do Tribunal de Justiça de São Paulo indica 3.247 casos julgados [há uma imprecisão na seleção dos precedentes] nos últimos anos na Seção de Direito Privado, ações com fundamento no direito de vizinhança, e de Direito Público, ações movidas pelo Ministério Público ou pela administração quando o ruído atinge terceiros. A jurisprudência diferencia a poluição diretamente identificada da poluição cumulativa, em que o ruído do estabelecimento comercial é somado ao ruído de outras fontes e determinou a construção de barreira acústica para mitigação de ruídos causada por rodovia ou o encerramento as 23:59 hs de evento cultural noturno. Por outro lado, considerou lícita a emissão de ruído dentro do limite regulamentado, apesar do incômodo causado a dois condomínios residenciais limítrofes.
A poluição sonora é um tema que causa crescente preocupação na vida urbana e gera crescente número de litígios com diversas causas, fundamentos e resultado. Há que discipliná-la para que nossas cidades sejam sustentáveis, na medida do possível.
Fonte: Conjur