Uma preocupação que atinge parcela relevante das famílias brasileiras é como ocorrerá a transferência do patrimônio dos pais aos filhos, seja no sentido de atender as vontades e desejos dos genitores, seja pela carga tributária existente no momento da transmissão.
Como alternativa à transmissão causa mortis, não é raro se deparar com situações onde o genitor realize a transferência, ainda em vida, aos seus herdeiros, de parcela de seu patrimônio, como modo a suprir algumas necessidades destes, ou mesmo de forma a organizar a sua sucessão, dentre elas, suporte financeiro, destinação de bens específicos a cada um dos herdeiros visando a evitar o condomínio, por exemplo, ou mesmo, a doação de participações societárias com reserva de usufruto vitalício na figura do doador, no âmbito de um planejamento sucessório, o que pode ser feito como antecipação da parcela legítima do patrimônio e que deverá ser levada à colação no momento do falecimento.
Via de regra, essa transferência de pais para filhos ocorre a título gratuito, sendo considerada, portanto uma doação. Neste sentido, os bens doados aos filhos podem ocorrer de duas formas distintas:
1) Doação proveniente da parcela disponível do patrimônio [1]; ou
2) Doação a título de antecipação de legítima.
A parcela disponível se trata do montante do patrimônio que uma pessoa pode dispor livremente, isto é, transferir em vida, ou determinar a destinação pós falecimento para qualquer pessoa que deseje, desde que respeitada a parcela que deverá ser destinada obrigatoriamente aos seus herdeiros necessários [2], denominada parcela legítima.
Isso porque a legislação brasileira determina que pelo menos metade dos bens sejam destinados aos herdeiros necessários (legítima), que, como regra geral, deverá seguir a ordem de vocação hereditária determinada em lei, de forma excludente, descendentes, cônjuge sobrevivente e ascendentes [3].
À luz da legislação, e visando conceder tratamentos idênticos aos herdeiros, é comum que ocorram doações a título de antecipação de legítima. Isso permite que, no momento do falecimento, todos os bens que foram doados em vida aos herdeiros sob tal condição, deverão ser trazidos à composição do monte-mor do falecido, para que sejam descontados respectivos valores do montante da parcela legítima a ser recebida por cada um dos herdeiros necessários no momento da realização da partilha. O procedimento de apresentar os bens recebidos como antecipação de legítima é chamado de “colação”.
“Artigo 2.002. Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação.
Parágrafo único. Para cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível.”
A principal intenção da colação é, de fato, conceder uma equidade na partilha dos bens aos herdeiros, nos termos do artigo 2.003 do Código Civil, porém, a depender do cenário fático, tal equidade pode não existir. Neste sentido, o Código Civil, prevê que “O valor de colação dos bens doados será aquele, certo ou estimativo, que lhes atribuir o ato de liberalidade” [4], ou seja, no momento da colação deve-se considerar o valor na data da doação, seja esta realizada um mês antes do falecimento, ou há 20 anos.
LEIA TAMBÉM:
- Descarte correto de lixo eletrônico nos condomínios
- Descarte correto de lixo eletrônico nos condomínios
Porém, em sentido oposto, o atual Código de Processo Civil [5] (CPC) traz a previsão de que os bens sejam trazidos à colação pelo valor detido na época da abertura da sucessão.
As formas de apuração do valor dos bens trazidos à colação indicadas nos dois dispositivos legais podem significar uma grande diferença no cálculo da partilha.
É nítido o conflito de previsões entre o Código Civil e o CPC, e a grande diferença que eles causam na apuração da partilha. Assim, se torna necessário recorrer ao §1º do artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [6] (LINDB), o qual estabelece que a lei posterior revoga a anterior quando ambas possuem previsão incompatível:
“Artigo 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.”
Desta forma, a previsão a ser considerada é a do CPC, uma vez que se trata de lei posterior ao Código Civil [7].
Ao consultar a jurisprudência sobre o tema, é de grande importância se verificar a data da abertura do inventário do referido caso, uma vez que a depender da data de abertura da sucessão, um mesmo bem pode ter dois valores diferentes quando levado a colação, conforme visto acima.
Ainda, é possível identificar na jurisprudência alguns pontos adicionais, que não são observados na leitura fria e simples da lei.
Seguindo o disposto na Lindb, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) apresenta entendimento no sentido de que o valor da colação de bens deve estar atrelado ao critério de direito intertemporal, que deve definir qual a regra jurídica aplicável [8].
“5- Na hipótese, tendo o autor da herança falecido antes da entrada em vigor do CC/2002, aplica-se a regra do artigo 1.014, parágrafo único, do CPC/73, devendo a colação se dê pelo valor do bem ao tempo da abertura da sucessão [9].“
O mesmo tribunal também apresenta decisões com entendimento que no período pós Código Civil e anterior ao CPC, seria necessário realizar a correção monetária sobre o valor da doação até o momento de abertura da partilha, senão vejamos:
“1) Tendo sido aberta a sucessão na vigência do Código Civil de 2002, deve-se observar o critério estabelecido no artigo 2.004 do referido diploma, que modificou o artigo 1.014, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973, pois a contradição presente nos diplomas legais, quanto ao valor dos bens doados a serem trazidos à colação, deve ser solucionada com observância do princípio de direito intertemporal tempus regit actum.
2) O valor de colação dos bens deverá ser aquele atribuído ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da abertura da sucessão.
3) Existindo divergência quanto ao valor atribuído aos bens no ato de liberalidade, poderá o julgador determinar a avaliação por perícia técnica para aferir o valor que efetivamente possuíam à época da doação[10].“
Nos casos em questão, a utilização de correção monetária foi uma solução encontrada para trazer equidade no cálculo da partilha, isto é, evitando que um herdeiro se beneficie irregularmente perante outro.
Um outro ponto a ser considerado e abordado pela jurisprudência do STJ em relação ao período pós Código Civil e pré atual CPC, diz respeito ao cenário em que o bem recebido em doação não existe mais na abertura da sucessão, assunto abordado pelo Enunciado 119 do Conselho da Justiça Federal (CJF):
“Para evitar o enriquecimento sem causa, a colação será efetuada com base no valor da época da doação, nos termos do caput do artigo 2.004, exclusivamente na hipótese em que o bem doado não mais pertença ao patrimônio do donatário. Se, ao contrário, o bem ainda integrar seu patrimônio, a colação se fará com base no valor do bem na época da abertura da sucessão, nos termos do artigo 1.014 do CPC, de modo a preservar a quantia que efetivamente integrará a legítima quando esta se constituiu, ou seja, na data do óbito (resultado da interpretação sistemática do artigo 2.004 e seus parágrafos, juntamente com os arts. 1.832 e 884 do Código Civil)[11].”
Como visto acima, além da mudança da legislação, os últimos anos trouxeram jurisprudência visando garantir direitos igualitários aos herdeiros.
A doação como antecipação de legítima, por si só, é um assunto que traz complexidade e deve ser analisado com cuidado antes de ser realizada a doação, no âmbito de planejamento sucessório, uma vez que podem ocorrer desdobramentos que não foram previstos no momento da sua realização, como a hipótese em que um herdeiro possa ter que retornar parcela do patrimônio recebido anos atrás para divisão ou compensação a outros herdeiros que não foram contemplados no momento da liberalidade, evento que, na grande maioria dos casos, não é cogitado.
Fonte: conjur